sábado, 27 de agosto de 2016

Juazeiro do meu tempo. José Carlos Pimentel: poder persuasivo - Por Jotal Alcides

De acordo com o filósofo grego Aristóteles, discípulo de Platão e professor de Alexandre, o Grande, "a música é celeste, de natureza divina e de tal beleza que encanta a alma e a eleva acima da sua condição". Por isso, o genial filósofo alemão Friedrich Nietzsche, dizia que "sem música, a vida seria um tremendo erro". E sem música italiana, o erro seria ainda maior. Exatamente no início dos anos dourados do Juazeiro do Meu Tempo, época de ouro do rádio no Cariri, em 1965 Elvis Presley lançou um álbum com Santa Lucia, uma das canções da Itália mais famosas no mundo. Fez grande sucesso, cantando apenas o primeiro trecho em italiano:"Sul mare luccica, l'astro d'argento, plácida é l'onda, prospero Il vento, venite all'agile, barchetta mia, Santa Lucia, Santa Lucia". Essa música, criada por Teodoro Cottrau em 1850, foi gravada pela primeira vez em 1916 por Enrico Caruso. Desde então é sucesso no mundo todo. Quando cheguei na Rádio Progresso do Juazeiro, em 1967,reencontrei José Carlos Pimentel, ardoroso defensor da língua italiana e especialmente da música italiana, que é quase mágica, Certamente, Pimentel herdou isso da convivência com os padres salesianos do Juazeiro, muitos deles vindos da Itália trazendo e reeditando aqui seus costumes, suas tradições, sua arte, sua música, seus sentimentos telúricos, como padre Gino Moratelli, diretor de longa duração do Colégio Salesiano do Juazeiro, com quem eu gostava de ficar ouvindo histórias da Itália saboreando um amendoim torrado na hora do recreio. Era assim que matavam a saudade de sua querida Itália enquanto cumpriam no Brasil sua missão de salesianos de Dom Bosco educando a juventude brasileira.Foi nesse ambiente saudável que José Carlos Pimentel tomou gosto e tornou-se um dos maiores entusiastas da música romântica italiana. Era fã incondicional de Domenico Modugno, um dos maioress cantores italianos do século XX, intérprete de Canzone Per Te, de Sérgio Endrigo e Sérgio Bardotti, vencedora do festival de Sanremo, em 1968, com Roberto Carlos. Mas Pimentel tinha também um grande ídolo na musica brasileira: Aguinaldo Timóteo. Passava o dia cantando "Os verdes campos de minha terra".Quase 50 anos depois,: "dizem que eu imitava muito bem o Aguinaldo", diverte-se gargalhando. Até hoje nunca explicou essa sua tendência para a música, mas, pelo seu perfil intelectual, poderia repetir o que um dia disse Ludwig van Beethoven: "A música é uma revelação superior a toda sabedoria e filosofia". Além de cantante, José Carlos Pimentel na Rádio Progresso era noticiarista. Produzia e apresentava com Erivan Xavier o jornal Progresso, diariamente, às 22 horas, com notícias municipais, nacionais e internacionais.Foi anda cronista social da emissora, apresentando "flagrantes sociais juazeirenses" e promovendo aos domingos o concurso "As dez mais elegantes beldades da sociedade juzeirense". Ele aproveitava a grande freqüência ao Cine Eldorado, perto da emissora, de mocinhas estudantes do Colégio Monsenhor Macedo, que concentrava então a elite da educação feminina no Juazeiro. Cada vencedora recebia um brinde do patrocinador Armarinho Silva, de propriedade do empresário João Silva.Era uma concorrência grande de meninas ansiosas para aparecer em destaque no programa de Pimentel. Essa promoção fez um sucesso tão retumbante que, em 1970, na sua primeira das três eleições que venceu para vereador do Juazeiro, 70% dos votos que recebeu foram das urnas do Colégio Monsenhor Macedo. Para essa eleição ele teve uma ajudinha discreta do Vigário do Juazeiro, seu amigo Padre Murilo de Sá Barreto que, em eventos fora da igreja, aproveitava para deixar seu recado eleitoral: "Não seja retardatário, vote no menino do Vigário". Pimentel foi eleito. Como vereador, assumiu a Prefeitura do Juazeiro por 15 dias, na ausência do prefeito Ailton Gomes, em 1980, em viagem a Argentina. Ainda na gestão pública, Pimentel foi o primeiro bibliotecário da Biblioteca Pública do Juazeiro. Outra atividade marcante de Pimentel na Rádio Progresso foi a de repórter eclesiástico. Como era conhecedor das liturgias católicas exercitadas nos Salesianos e amicíssimo do Padre Murilo de Sá Barreto, foi escalado por Menezes Barbosa para coberturas religiosas da paróquia, principalmente a transmissão da Santa Missa aos domingos, diretamente da Matriz de Nossa Senhora das Dores. Polivalente, inteligente, eficiente, dinâmico, culto, impetuoso, trepidante, elétrico, falante, centelhante, autosufciente e autoconfiante, Pimentel tem anda como marca do sua personalidade a ironia. Para ele, como para Victor Hugo, "é pela ironia que começa a liberdade", sobretudo a liberdade de expressão. Depois que se tornou advogado, então, sua irreverência triplicou e ficou com a língua afiadíssima. Advogado destemido, franco e agressivo, sem papa na língua, como seus clientes gostam. É um apaixonado pelo poder das palavras, da música e da inteligência. Gosta de estar ao lado de pessoas inteligentes. Pessoas vazias e chatas lhe dão estresse, impaciência e sonolência. Faz crítica severa aos políticos brasileiros, considerando quase todos corruptos e ladrões. E lamenta que o Judiciário brasileiro esteja tão deteriorado moralmente, de credibilidade abalada junto à população. Querido, admirado e bem relacionado no Forum do Juazeiro, não deixa escapar as falhas circunstanciais, nem limitações, omissões ou excessos de sua entidade associativa, a OAB, sigla que ele traduz como Organização Antonio Besteira, causando risadas entre juízes e advogados. Entre eles, não é dificil . encontrar alguém que já tenha dito para Pimentel, sorrindo. "Quero morrer seu amigo..." Humor gera humor. No fundo, no fundo, sabe ser grande amigo, amigo dos amigos, contados nos dedos por seu espírito altamente seletivo. Detesta imbecis e não tolera imbecilidades. Sempre usou a ironia como uma brincadeira de espírito, mas sabendo que ela pode abalar poderes majestáticos porque até o mais violento tirano se dobra ao ser caricaturado. Em resumo, José Carlos Pimentel é uma das grandes figuras da época de ouro do rádio caririense, que virou político pela popularidade alcançada e advogado dos mais requisitados do Cariri, sempre acreditando no provérbio italiano: "Volere é potere (Querer é poder). No seu tempo de Rádio Progresso, artisticamente criativo e talentoso, por diversas vezes animou e cantou em shows da emissora na Quadra João Cornélio. Mas, sabem onde o ilustre advogado de hoje começou sua carreira radiofônica? Na Amplificadora Domingos Sávio, que funcionava internamente no Colégio Salesiano do Juazeiro, instalada no primeiro andar ao lado da Sacristia da antiga capela, com visão para o campo de futebol, de onde ele e seu amigo Daniel Walker transmitiam informações de utilidade aos estudantes ,mensagens salesianas, conselhos de Dom Bosco, música clássica e instrumental, e jogos do campeonato de times do colégio. Foi assim que os dois começaram a sonhar em trabalhar em rádio. Acreditaram, foram à luta e se realizaram pois os dois marcaram a história da radiofonia no Cariri. Bem que poderiam ter formado uma dupla esportiva no rádio: Pimentel, mais agitado e expansivo, como locutor esportivo; e Daniel, mais contido e reflexivo, como,comentarista esportivo. Penso que os dois, dotados de raciocínio lógico, tirocínio jornalístico, capacidade intelectual, inteligência emocional, robustez cultural e visão holística, poderiam ter construído uma dupla do barulho de alto nível para balançar as redes da audiência regional e empolgar as massas torcedoras, sofredoras e vibradoras. Dono de espirituosidade, sagacidade, perspicácia e loquacidade, José Carlos Pimentel teve sua capacidade intelectual potencializada e turbinada por sólida formação cultural salesiana, tornando-se num cara singularmente plural. Seguramente, por essa razão tem outra particularidade que desde sempre tenho observado em seu perfil: amor-próprio incondicional ou seja, ama-se a si mesmo integralmente, sem restrições. Ama suas virtudes e ama seus defeitos. Ninguém é perfeito. Não que goste dos seus defeitos e não tente superá-los. Significa que tem aceitação total e verdadeira por si próprio, o que é muito favorável ao sucesso. E mesmo que algum defeito imponha desafio como um mal perturbador, ele tem a força oposta de uma virtude para se livrar dele: "quem canta seus males espanta". Conheci Pimentel em 1958., em noite de espetáculo artístico no Colégio Salesiano. Eu, bem garoto, na platéia, e ele, ainda garoto, no palco, solo, cantando Santa Lucia, a bela canção napolitana::"No mar brilha, a estrela de prata, plácida é a vaga, o vento é favorável, venha ligeiro, meu barquinho, Santa Lucia! Santa Lucia!" Se o escritor italiano Franco Moschino estivesse lá teria dito: "A música se expande como a luz por todos os lugares onde passa". Pimentel parece que sabia desse poder persuasivo e exultava com seu canto iluminado. Bravíssimo! Aplaudidíssimo! !

*Jota Alcides, jornalista e escritor, é autor de "PRA-8 O Rádio no Brasil" e "O Recife, Berço Brasílico".

sábado, 20 de agosto de 2016

JUAZEIRO DO MEU TEMPO-11 COELHO ALVES, MESTRE DO RÁDIO - Por Jota Alcides

Mestre dos Mestres da filosofia oriental, Confucio ( 551 a.C. – 479 a.C.) formou uma escola que disseminou pelo mundo essenciais princípios de vida para melhoria da humanidade: altruísmo; cortesia ritual; conhecimento; integridade; fidelidade; justiça; retidão; e honradez. Durante 15 anos, de 1952 a 1967, ele foi o Rei do Rádio no Cariri. Tudo que se relacionava com rádio - programação musical, jornadas esportivas, programação cultural, formação de equipes, shows artísticos, reportagens externas, coberturas políticas, publicidade radiofônica, gravações comerciais etc - era com ele: Coelho Alves, diretor da Rádio Iracema do Juazeiro, a pioneira da Rede Iracemista de Rádio no Cariri. Depois da chegada da Rádio Progresso em 1967, ele passou a dividir o reinado com Menezes Barbosa, diretor da nova emissora que assumiu já com elevado prestígio intelectual, mas Coelho Alves manteve sua condição de grande ícone da radiofonia caiririense, sendo reverenciado e homenageado como Mestre do Rádio, carinhosamente chamado "Mestre Coelho". Curiosamente, conquistou esse reconhecimento praticando, talvez até sem saber, os mesmos princípios da doutrina confucionista. Mas, também por intuição, ele seguia Shakespeare: "Ninguém poderá jamais aperfeiçoar-se, se não tiver o mundo como mestre. A experiência se adquire na prática". Foi assim que Coelho Alves se tornou mestre. Formado em contabilidade pela Escola Técnica do Comércio de Juazeiro do Norte, Coelho Alves começou na radiofonia em 1942 no Centro Regional de Publicidade do Juazeiro, convidado então pelo diretor Lourival Marques, juazeirense que foi mais tarde grande e inovador diretor da Rádio Nacional do Rio de Janeiro., na Era de Ouro do rádio brasileiro.Em 1951, passou a integrar a primeira emissora de Juazeiro, Radio Iracema,por indicação de Lourival Marques ao Grupo Irmãos Parente, dono da nova estação, tornando-se no ano seguinte seu diretor. Como diretor da Rádio Iracema, Coelho Alves enfrentou muitas dificuldades. A rádio era o símbolo do desenvolvimento do Juazeiro, mas a cidade ainda tinha um comércio varejista incipiente e era uma verdadeira batalha conseguir anúncio publicitário para manter a emissora. Outro grande obstáculo: Juazeiro ainda não tinha a energia de Paulo Afonso, que só chegou em 1961, pioneiramente no Ceará. Até então a cidade era iluminada por geradores mantidos pela Prefeitura durante parte da noite. Eram poucas as residências com aparelhos receptores de rádio. Tudo isso era dificuldade para audiência e expansão da emissora. Coelho Alves teve que, praticamente, desbravar uma floresta e começar tudo do zero. Mas, paciente e perseverante, foi à luta para conseguir sua realização. Com a chegada da energia elétrica permanente, fornecida pela Chesf e distribuída no Juazeiro pela Celca-Companhia de Eletricidade do Cariri, dez anos depois da inauguração da Rádio Iracema, Juazeiro ganhou novo impulso de progresso. O comércio se abasteceu de eletrodomésticos e houve correria compulsiva às compras de geladeiras, fogões, enceradeiras, chuveiros, liquidificadores, ferros de passar roupas, ventiladores, aspiradores, aparelhos de rádio. Juazeiro ganhou até uma fábrica de rádios - a IESA, Indústrias Eletromáquinas S/A. Mercado aquecido, mais publicidade. Surgiram novos anunciantes, um alívio para Coelho Alves na luta para manutenção da emissora pioneira. Até o Juazeiro do Meu Tempo, final dos anos 1960, grandes nomes da radiofonia juazeirense começaram, cresceram e se projetaram na região do Cariri e no Ceará, sob a direção e a orientação do Mestre Coelho.Cronistas: Souza Menezes, Expedito Cornélio, Elias Sobral; comentaristas esportivos: Luiz Marques, Nestor Gondim, José Boaventura; locutores esportivos: Dário Maia Coimbra, Luiz Carlos de Lima, Francisco de Assis Silva(Foguinho), Vilmar Lima, Carlos Alencar; Jucier Lima; repórteres esportivos: Lucier Menezes, Cícero Antonio, Paulo Duarte, Dalton Medeiros; disck-joqueis e animadores: Alceli Sobreira, Geraldo Alves, Aguinaldo Carlos, Pedro Duarte, Maciel Silva, Jose Brasileiro, Aloisio Campelo, Robson Xavier; redatores: Daniel Walker, Iderval Pedroso, Donizeti Sobreira,Erivan Xavier; ;locutoras:Wilany Magalhães, Almery Sobreira, Vilma Maria. Foi mestre e amigo de todos eles. Segundo Friedrich Nietzsche "quem é fundamentalmente um mestre, apenas toma a sério tudo o que se relaciona com os seus discípulos, - incluindo a si próprio". Coelho era assim. Não era um intelectual acadêmico, mas um intelectual popular,com sensibilidade e sabedoria. Descobriu na dureza da experiência que a arte de pensar é um tesouro dos sábios. Aprendeu a pensar antes de reagir e a entender cada pessoa como ser único no universo. Sabia incendiar a motivação de cada um dos seus para vencer obstáculos aparentemente intransponíveis. Para todos eles, um mestre inesquecível que soube ensinar de forma simples, humana e alegre. Além disso, Coelho tinha um diferencial, valor agregado, sua belíssima voz, "uma voz amiga dentro do seu lar" que encantava a todos no Cariri. Minha relação com Coelho Alves foi inicialmente uma relação típica de principiante diante de um professor, veterano e pioneiro, de todos mestre e mestre para todos.. Tinha por ele admiração e respeito, com certa inibição para me aproximar e puxar uma conversa. Parece que ele percebia isso e me tratava com cordialidade, educação e gentileza. Por isso, eu achava Coelho meio sério e meio risonho. Sobre isso encontrei, depois, explicação em Machado de Assis: "O Mestre deve ser meio sério, para dar autoridade à lição e meio risonho, para obter o perdão da correção se houver necessidade". Ao final de 1969, na calçada do Jaçanã Lanches, no Edifício M. Oliveira. Coelho Alves. sabendo que eu estava me preparando para voltar ao Recife, falou-me direto e franco, seu estilo: "Quero mandar Cícero Antonio (seu filho) para Recife também para trabalhar e estudar. Mas, ele tem uma dificuldade enorme para viver longe de casa e do Juazeiro. Preciso de uma pessoa que ajude ele a conhecer o Recife, gostar do Recife e se desligar um pouco do Juazeiro porque somente assim ele terá seu rumo próprio na vida. Aqui, perto dos pais, não conseguirá. Você faria isso por mim?. Eu confio em você!". Como exímio locutor, Coelho sabia o valor das palavras. Mais uma vez inspirava-se no Mestre Confucio: "Quem não conhece o valor das palavras não saberá conhecer os homens". Com o amor de pai e de verdadeiro mestre, queria que o filho-discípulo aprendesse a desenvencilhar-se sozinho na vida. Desde esse momento, então, nosso relacionamento, que era apenas de cordialidade, virou amizade. Tornei-me cúmplice de Coelho Alves em favor do seu filho Cicero Antonio.. Mas o plano era modesto para solução de Cícero Antonio..Com imaginação fértil, ele ficava inventando coisas para passar o fim-de-semana no Juazeiro. Até "buscar um cinto deixado em casa e que está me fazendo falta". Parecia brincadeira. Mas, em verdade, Cícero Antonio era apegadíssimo ao pai. Não conseguia viver longe dele. O plano fracassou. Por conta desse distanciamento forçado, tornou-se um rebelde sem causa. Não quis ficar no Recife, não ficou. Até o dia em que arranjou uma causa bem longe do Juazeiro e do Brasil. Foi estudar Turismo na Espanha. Em 1970, Coelho Alves fez uma viagem ao Recife para renovação de contrato publicitário com o representante dos Relógios Grão-Duque, anunciante da Rádio Iracema. Aproveitou e foi visitar-me no Rádio Clube de Pernambuco, Palácio do Rádio, avenida Cruz Cabugá, bairro de Santo Amaro. Recebi-o com alegria e mostrei-lhe as principais instalações da emissora pioneira na América Latina. No estúdio A, onde eram apresentados ao vivo os programas campeões de audiência, diante dos possantes microfones da PRA-8, Coelho ficou pensativo e confessou: "Eu era para estar trabalhando aqui nestes microfones famosos do radio brasileiro. Fui convidado duas vezes. Mas eu nunca quis sair do Juazeiro. Eu amo Juazeiro, vou morrer no Juazeiro". Foi o que aconteceu no dia 24 de novembro de 1984. Depois do almoço em casa na rua São José, ao lado de sua querida esposa, dona Rosa, Coelho foi fazer o que mais gostava nesse horário: tirar uma soneca numa bela rede, caprichosamente produzida pelo diversificado e criativo artesanato juazeirense, armada na sala. Mas enquanto dormia, seu coração parou e calou a voz mais bonita do Cariri. Sua sonoridade inconfundível agora está presente apenas em sinais de radioestesia no horizonte da eternidade. Saudade, Mestre Coelho!

*Jota Alcides, jornalista e escritor, é autor de "PRA-8 O Rádio no Brasil" e "Juazeiro, Cidade Gloriosa"

sábado, 6 de agosto de 2016

JUAZEIRO DO MEU TEMPO - Bola ao centro - Por Jota Alcides

"Chuá.Goooooooooooooo!". Era assim que o vibrante locutor esportivo Luis Carlos de Lima, da Rádio Iracema do Juazeiro, gritava o lance de gol espalhando emoção desde o velho estádio da LDJ-Liga Desportiva Juazeirense para todo o Vale do Cariri. Ao final da década de 1960, tempo do "Scratch do Rádio", muitos narradores esportivos no Brasil eram famosos por seus bordões: Waldir Amaral, Radio Globo: "tem peixe na rede"; Jorge Curi: Rádio Nacional: "passa de passagem"; Oswaldo Moreira, Rádio Tupi "respeitável público"; Fiori Giglioti, Rádio Bandeirantes: "abrem-se as cortinas e começa o espetáculo"; Geraldo José de Almeida, Rádio Record, "Dez é a camisa dele"; Willy Gonser, Rádio Nacional, "tem bola no barbante"; Ivan Lima, Rádio Clube de Pernambuco, "Bola na Rrrrrrrrrrede" Dos famosos dessa época, apenas Doalcei Bueno de Camargo, Rádio Tupi, não tinha bordão. O de Luis Carlos era "Chuá", simples, curto, fácil, original, empolgante e com significado: gostoso, fabuloso, delicioso, maravilhoso, representando o barulho da bola tocando na rede. Ao lado do chefe da Equipe 970 e seu comentarista titular, o catedrático José Boaventura, formava uma dupla imbatível em audiência e prestigio em todo o interior do Ceará. Antes, a equipe da Rádio Iracema já tinha tido dois excelentes comentaristas; Luiz Marques e Neston Gondim, e o narrrador Dário Maia Coimbra. Luiz Carlos começou como narrador esportivo na Rádio Iracema em 1962, convidado por José Boaventura. Os dois se tornaram amigos fraternos e passaram a desenvolver, cada vez mais, um trabalho conjunto competente e eficiente que virou uma marca da Rádio Iracema, consagrada como a emissora da melhor equipe esportiva do interior do Ceará. Nessa condição, Luiz Carlos e Boaventura fizeram transmissões de jogos no Maracanã e no Morumbi, cumprindo o chamado "verdadeiro esforço de reportagem". O prestígio deles ultrapassou as fronteiras do Cariri e do Ceará. Em 1965, Luiz Carlos foi o locutor convidado para fazer a primeira transmissão esportiva da Rádio Difusora de Cajazeiras, na Paraíba. Além de Luiz Carlos e Boaventura, faziam parte da Equipe 970: Francisco Silva (Foguinho), Vilmar Lima, Cícero Antonio, Carlos Alencar, Lucier Menezes, Paulo Duate. "Futebol de Primeira é na Pioneira", afirmavam orgulhosamente repetindo o slogan esportivo da primeira emissora do Juazeiro, inaugurada em novembro de 1951. De vez em quando, eles recebiam a visita de colegas de outros Estados. Quando isso ocorria, cediam para os colegas a modesta cabine de madeirite da emissora na LDJ, que mais parecia um poleiro de galinhas, e iam fazer a transmissão em cima do muro do estádio. Que precariedade! Foi o que aconteceu em 1968 quando o Santa Cruz do Recife jogou no Juazeiro. Na companhia do time dois monstros sagrados da radiofonia esportiva de Pernambuco: Gomes Neto, chefe de esportes do Rádio Jornal do Commércio, então a emissora mais potente do Brasil, e Ivan Lima, do Rádio Clube de Pernambuco, propagado como o locutor esportivo nº 1 do Norte e Nordeste do Brasil. Foram recebidos e tratados com cordialidade, cortesia e natural tietagem. Ficávamos lempolgados com ilustres presenças, mas morrendo de vergonha do estádio da LDJ. Tentávamos compensar a pobreza com gentileza. Chegado no sábado, véspera do jogo, Ivan Lima foi visitar a Rádio Iracema. Encontrou no estúdio Aguinaldo Carlos aguardando a "Hora do Ângelus" e já foi abrindo o verbo com seu vozeirão e ao seu estilo: "Vamos gravar a Ave Maria com a voz mais bonita do Brasil". Sorriu e completou diante de Aguinaldo surpreso com a inesperada celebridade: "Mas também é a voz mais cara do Norte e Nordeste". (Gargalhada). Era Ivan Lima mesmo, sem a mínima modéstia, pois, afinal, era aplaudido como o melhor locutor do Brasil. Conheci-o no início da década de 1970 no Rádio Clube PRA-8 onde fomos companheiros. Mais tarde, em 1977, quando eu era Diretor de Redação do Jornal do Commércio e ele diretor do Rádio Jornal do Commércio, entrou de repente na minha sala mostrando a arte de um anúncio do tamanho de uma página de jornal. O anúncio trazia uma foto enorme do rosto dele diante de possante microfone narrando um jogo. Na parte de baixo, escrito bem vistoso: Ivan Lima - O mais premiado locutor esportivo do Brasil. - Ouça o Escrete de Ouro - Rádio Jornal do Commércio. "Olha Jota, que coisa mais linda. Como eu sou bonito! (Risos). Por favor, publica essa página para mim no Jornal do Commércio. Pode ter certeza que vai ajudar a vender muito jornal". (Risos). Grandalhão, biofísico típico do baiano, era um cara de bem com a vida e com a autoestima nas alturas, pois festejadíssimo pelo povo de Pernambuco. No Juazeiro, Luiz Carlos não tinha o vozeirão de Ivan Lima, nem ganhava o que Ivan Lima ganhava, mas tinha a mesma empolgação de Ivan Lima. Narração de Luis Carlos tinha vibração, precisão, velocidade, espirituosidade e emoção. Com sua experiência, adotou uma técnica de comunicação apurada, usando de forma adequada o tom, o timbre e o ritmo de sua voz para melhor interpretar o que via acontecendo em campo e melhor se expressar para compreensão do público ouvinte. Dono de boa dicção, articulando bem as palavras, sem comer letras ou sílabas. aplicado e estudioso de sua atividade, ele respeitava o que os ouvintes sabiam e não podiam ser enganados: um comercial ao vivo é diferente de um programa romântico, um programa romântico é diferente de uma narração de futebol. E a própria narração de futebol pode ter pausas de respiração que determinam momentos de ritmo mais lento, como num lance de jogador contundido, ou mais rápido, como num lance de ataque fulminante de gol iminente. Para os ouvintes, um bom locutor esportivo precisa estar atentíssimo, ser sagaz e perspicaz para entender e interpretar manhas, artimanhas e peripécias que um jogador pode improvisar dentro de campo, como um dia fez o genial Mané Garrincha ao deixar todo mundo em dúvida antes de marcar o gol: '"O goleiro deles não queria abrir as pernas. Fiquei esperando". Foi assim, com diligência e inteligência que Luis Carlos chegou ao sucesso. Ao final da década de 1960, a Rádio Iracema tinha uma liderança consolidada nos esportes. Mesmo com uma equipe formidável - Wellington Amorim, Wilton Bezerra, Jussier Cunha, João Eudes, Madeilton Alexandre - a Rádio Progresso, que chegou liderando em jornalismo e música, precisou lutar muito e lutou persistentemente até conseguir uma fatia importante da audiência esportiva. Além de ser seu vizinho de residência, na Rua Santa Luzia, bairro de São Miguel, eu pessoalmente era admirador do Luiz Carlos porque ele possuia conhecimento profundo das regras, terminologia e história do futebol,fazia o torcedor ver o jogo sem estar no estádio, descrevendo todos os lances por completo. Situava o torcedor dentro de campo. Nos dias atuais, alguns locutores não fazem narrração, fazem enrolação - cruzou o zagueiro, cortou o zagueiro, bateu o atacante, caiu o meiocampista. Como diz Edemar Annuseck, jornalista, narrador esportivo que foi da Jovem Pan, Record, Tupi e Globo, "Hoje os tempos são outros, as narrações são outras, a qualidade é outra. Enfim, cada um faça como melhor lhe aprouver porque narrar futebol em rádio não é isso que a maioria faz nos dias de hoje". Luiz Carlos dava os nomes dos atletas. Fazia questão da precisão. Formado em Biologia pela Urca e pós-graduado em Planejamento Escolar, Luiz Carlos um dia reunido com um grupo de colegas, com a presença do meu amigo Wellington Amorim, que me contou depois, em avaliação sobre meu desempenho de estreante no jornalismo, resumiu: "Jota Alcides é um avancista". Certamente por isso, Luiz Carlos tomou a iniciativa de me brindar em outubro de 1968 com um Certificado de Honra ao Mérito assinado por jornalistas do rádio juazeirense por eu ter organizado e realizado no Juazeiro o 1º Simpósio da Imprensa Caririense: "Nós, abaixo assinados, membros do radialismo juazeirense, reconhecendo o profícuo trabalho do companheiro Jota Alcides, quando da realização do 1º Simpósio da Imprensa Caririense, conferimo-lhe esta medalha como prova do nosso reconhecimento". Assinados: Luiz Carlos de Lima, José Carlos Pimentel, Wellington Amorim, Lucier Menezes, João Barbosa e Robledo Pontes. Menezes Barbosa também assinou escrevendo: "Aprovo com justiça. O Jota Alcides merece a Honra ao Mérito e que fique este documento arquivado nos anais da Rádio Progresso e que se dê divulgação pela imprensa falada e escrita". Ao final da década de 1960, a atividade de locutor ainda não era regulamentada, o que só veio a ocorrer ao final da década de 1970.É impressionante quando a gente olha para trás e percebe a diferença do futebol do Juazeiro no tempo. Nos anos dourados da década de 1960, Icasa e Guarani, mesmo amadores e anda sem o Romeirão, eram muito melhores e mais competitivos do que esses dois timinhos que só deram vexame ao Juazeiro na Série D do Brasileirão. Que o diga Luiz Carlos, que ficou na Rádio Iracema até 1980, tendo passagem pela Radio Progresso de 1970 a 1972, quando voltou para a Rádio Iracema. Passou também pela Rádio Vale do Cariri AM com sua equipe esportiva. Surfou nas ondas do rádio juazeirense e deixou sua marca na história da radiofonia caririense: ninguérm esquece a abertura de suas jornadas esportivas na Rádio Iracema pela linda musica instrumental "Seventy-Six Trombones" com The Boston Pops Orchestra de John Williams. Quando essa música tocava, todo mundo no Juazeiro e no Cariri já sabia: vem aí o locutor do "Chuá" com a bola no centro do espetáculo ...Como era bom! " !

*Jota Alcides, jornalista e escritor, é autor de "Manchester do Cariri" e "Mestre da Bola no Ar"